Do Jaraguá para Itaipu: como a Voith e a Irga ajudaram a iluminar o Brasil

Nos anos 1970 e 1980, duas empresas (a Voith e a Irga) localizadas no distrito Jaraguá, periferia noroeste de São Paulo, protagonizaram duas façanhas, cada uma em seu setor de operações, as quais permitiram ao Brasil aumentar sua capacidade de produção de energia elétrica.

Comboio da Irga chega ao canteiro de obras da Usina Itaipu com o primeiro rotor produzido pela Voith (1982).  Foto: acervo Irga
Comboio da Irga chega ao canteiro de obras da Usina Itaipu com
o primeiro rotor produzido pela Voith (1982).
Foto: acervo Irga
Tamanha foi a complexidade dos dois feitos, que ambos foram amplamente divulgados em uma série de reportagens publicadas em vários jornais da grande imprensa, tais como a Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo.

A mais complexa peça mecânica já produzida no Brasil (até os anos 1980)

Tudo começou em 1978, quando a multinacional alemã Voith, instalada no Jaraguá desde 1964, recebera a encomenda para a produção de uma dúzia de rotores para a Usina de Itaipu Binacional, que após construída na cidade de Foz do Iguaçu, no estado do Paraná, se tornaria uma das maiores hidrelétricas do planeta.

Esses rotores, chamados de "corações" pelos técnicos, servem para transformar a energia hidráulica do rio Paraná em energia mecânica, que por sua vez é convertida (por meio de geradores) na energia elétrica que atualmente ilumina cidades do Brasil e do Paraguai.

O primeiro rotor de Itaipu em fabricação na Voith. Foto: acervo O Estado de S.Paulo
O primeiro rotor de Itaipu
em fabricação na Voith.
Foto: O Estado de S.Paulo
Ao longo dos três anos seguintes, trabalhadores provenientes de Ribeirão Pires e Jundiaí, dentre outras localidades de São Paulo, além de técnicos treinados na matriz da empresa, na Alemanha, e especialistas em controle e soldagem vindos daquele país, criaram aquilo que o então diretor da Voith local, Cristian Nielsen, denominou na época como "a maior e mais complexa peça mecânica já produzida no Brasil".

Essa peça era o primeiro rotor da encomenda (a primeira turbina de Itaipu) o qual possui:
  • 8,60 metros de diâmetro;
  • 4,60 metros de altura;
  • 305 toneladas;
  • 13 pás de aço fundido revestidas de aço inox.
Seu desenvolvimento demandou a construção de um pavilhão de 6.600 metros quadrados nas dependências da Voith, no Jaraguá, além de uma ponte rolante capaz de erguer peças e equipamentos de até 300 toneladas.

A produção do rotor também exigiu a introdução de técnicas de fundição e soldagem nunca vistas no Brasil até então. Todo o processo envolveu mais de 200 tipos de operações industriais de soldagem, fundição e usinagem.

A peça foi avaliada em US$ 7 milhões.

Com o sucesso do primeiro projeto, a Voith terminaria por fornecer 13 dos 20 rotores e 11 dos 20 geradores atualmente em operação em Itaipu.

Do Jaraguá para Itaipu: a odisseia da Irga

Eram 10h do dia 3 de dezembro de 1981 quando uma carreta da empresa Irga Lupércio Torres S.A., que até 2017 teve sua sede na avenida Raimundo Pereira de Magalhães (antiga Estrada Velha de Campinas), no distrito Jaraguá, dera a partida da Voith local, de onde levava o rotor de 305 toneladas fabricado ao longo dos três últimos anos pela referida indústria alemã, rumo a Itaipu, no Paraná.

Saída do comboio da Irga com o rotor a partir da Voith Jaraguá, em 3 de dezembro de 1981. Foto: acervo Irga
Saída do comboio da Irga com o rotor a
partir da Voith Jaraguá, em 3 de dezembro de 1981.
Foto: acervo Irga
A carreta, que havia sido desenvolvida especialmente para o transporte do rotor, tinha:
  • 106 metros de comprimento;
  • 2 dollys / atrelados;
  • 16 eixos;
  • 8 pneus por eixo;
  • 256 rodas;
  • 4 caminhões EUCLID (que eram alternados) com motores de 635 hp cada, para dar tração.
Este veículo sem precedentes na história do transporte rodoviário nacional era acompanhado por:
  • 1 caminhão tanque com 12 mil litros de diesel (a carreta consumia 9 litros por quilômetro);
  • 1 carro oficina;
  • 1 carro restaurante;
  • 1 ônibus-leito;
  • 2 batedores;
  • 1 equipe com 40 pessoas.
Todo o conjunto, juntamente com o rotor, pesava 570 toneladas. Esse extraordinário comboio, que se locomovia a uma velocidade média de 5 km/h, tinha o seguinte itinerário:
  • Voith Jaraguá;
  • Rua Friederich Von Voith;
  • Estrada Velha de Campinas;
  • Marginal Tietê;
  • Avenida Sumaré;
  • Avenida Henrique Schaumann;
  • Avenida Rebouças;
  • Marginal Pinheiros;
  • Rodovia Castelo Branco;
  • Várias estradas do Paraná;
  • Foz do Iguaçu / Itaipu.
Ao todo, 1.370 quilômetros foram percorridos desde o Jaraguá até Itaipu.

O comboio da Irga na Serra de Botucatu. Foto: acervo Irga
O comboio da Irga
na Serra de Botucatu.
Foto: acervo Irga
Durante o trajeto, a equipe da Irga trabalhava (em conjunto com colaboradores de outras instituições) em inúmeras atividades, tais como:
  • Condução da carreta;
  • Obras de reforço de pontes;
  • Asfaltamento de pequenos trechos de pistas;
  • Alargamentos de pistas;
  • Manutenções preventivas e corretivas dos veículos;
  • Preparação de refeições;
  • Deslocamento de ônibus-leito;
  • Apoio geral.
Só nos primeiros 2 quilômetros do percurso foram removidos, por funcionários da Eletropaulo, 5 cabos de iluminação e 50 ramais residenciais para a passagem da carreta.

No caminho, nas proximidades das cidades pelas quais o comboio passava, acumulavam-se nos acostamentos das vias multidões de pessoas, que acenavam para os motoristas, estupefatas como o monstruoso veículo.

Pessoas se aglomeravam para ver a passagem da carreta. Foto: acervo Irga
Pessoas se aglomeravam para
ver a passagem da carreta.
Foto: acervo Irga
O tempo estimado no planejamento para a conclusão do transporte do rotor fora de 60 dias, mas devido aos contratempos inesperados como a interdição de uma rodovia por 20 dias devido destruição causada por fortes chuvas, o projeto foi concluído em 90 dias, tendo terminado no dia 2 de março de 1982.

A chegada no canteiro de obras da usina foi recepcionada pelas imprensas brasileira e paraguaia, e também pelos operários e diretores técnicos da estatal.

O rotor, em Itaipu, posicionado sobre fogueira de dormentes. Foto: acervo Irga
O rotor, em Itaipu, posicionado
sobre fogueira de dormentes.
Foto: acervo Irga
Na época, esta odisseia da Irga fora considerada o recorde brasileiro e o maior feito em transporte rodoviário de tonelagem por distância no mundo. A entrega custara mais de US$ 500 mil. Durante três anos consecutivos, a Irga transportaria os demais rotores produzidos na Voith Jaraguá até Itaipu.

Em 2017, a sede da Irga mudou-se do Jaraguá para a cidade de Caieiras, e no terreno localizado na avenida Raimundo Pereira de Magalhães onde a mitológica empresa de transportes de cargas pesadas permanecera por mais de 30 anos instalou-se, em 2018, o Assaí Atacadista.

Em 2016, a Usina Hidrelétrica de Itaipu gerou 103.098.355 Megawatts-hora (103,1 milhões de MWh), marca que até hoje é o recorde da companhia e também o recorde mundial de produção de energia elétrica.

Usina Hidrelétrica de Itaipu. Foto: International Hydropower Association
Usina Hidrelétrica de Itaipu.
Foto: International Hydropower Association
Cerca de 15% a 20% da energia elétrica consumida no Brasil atualmente provém desta hidrelétrica.

Enfim, hoje, no "peito" da Itaipu batem 20 "corações", 13 dos quais produzidos no Jaraguá pela Voith e transportados até o Paraná pela Irga.

Referências

FOLHA DE S.PAULO. Turbina para Itaipu. São Paulo: Folha de S.Paulo, 1981.

G1. Itaipu quebra recorde mundial de produção de energia em 2016. Paraná: G1 PR, 2017. Disponível em <http://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/2017/01/itaipu-quebra-recorde-mundial-de-producao-de-energia-em-2016.html>. Acesso em: 11 jun.2018.

GAZETA DO RIO PARDO. A longa viagem do rotor de Itaipu. Especial. ed. Rio Pardo: Gazeta do Rio Pardo, 1982.

INTERNATIONAL HYDROPOWER ASSOCIATION. Itaipu DAM, Paraguay / Brazil. Itaipu: International Hydropower Association, 2011. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/hydropower/5915176674/in/set-72157627144851872>. Acesso em: 11 jun. 2018.

IRGA LUPERCIO TORRES. 1º rotor de Itaipu. São Paulo: Irga Lupercio Torres, 2017. Disponível em: <https://www.facebook.com/irgaluperciotorres/posts/1353520194704742>. Acesso em: 11 jun. 2018.

O ESTADO DE S.PAULO. O 1º rotor de Itaipu está sendo entregue rigorosamente no prazo, graças à Voith. São Paulo: Voith, 1981. 3 p.

O ESTADO DE S.PAULO. Pronto o roteiro para carreta que vai a Itaipu. São Paulo: O Estado de S.Paulo, 1981. 31 p. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/>. Acesso em: 11 jun. 2018.

O ESTADO DE S.PAULO. Voith entrega equipamentos para Itaipu. São Paulo: O Estado de S.Paulo, 1981. 24 p.

SUPERINTERESSANTE. Supercaminhões para supercargas. São Paulo: Abril, 2016. Disponível em: <https://super.abril.com.br/tecnologia/supercaminhoes-para-supercargas/>. Acesso em: 11 jun. 2018.

VOITH. A história da Voith: Sempre à frente com boas ideias - desde 1867. Heindenheim: Voith, 2013. 50,51 p.

VOITH. História da Voith no Brasil. São Paulo: Voith, 2018. Disponível em: <http://www.voith.com/br/o-grupo/historia/historia-da-voith-no-brasil-26034.html>. Acesso em: 11 jun. 2018.

Sobre o Autor:
Marinaldo Gomes Pedrosa Marinaldo Gomes Pedrosa é formado em Jornalismo pela UniSant'Anna. Vive no bairro Jaraguá desde 1976.

Comentários

  1. Espetacular essa materia foi realmente uma obra de arte para a época parabens

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  2. Fiz parte disso. Eu chefiava a Expedição naquela época.

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    1. Uau! Que bacana! Conte-me mais histórias sobre a Voith para que eu possa publicá-las no nosso blog! Envie por e-mail, por favor: pedrosa.marinaldo@gmail.com

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  3. Excelente empresa também especialização em fabricação de máquinas de celulose

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    1. Verdade. Já trabalhou lá? Conte-me mais histórias sobre a Voith para que eu possa publicá-las no nosso blog! Envie por e-mail, por favor: pedrosa.marinaldo@gmail.com

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  4. Linda matéria, para o nossos conhecimento e para todos que se interessa a saber sobre a Woit

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    1. Obrigado! Você já trabalhou lá? Conte-me mais histórias sobre a Voith para que eu possa publicá-las no nosso blog! Envie por e-mail, por favor: pedrosa.marinaldo@gmail.com

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