Jaraguá Guarani: "defenderemos essa terra com a vida", diz David Karai Popygua no SESC Pompeia

Três guaranis da Terra Indígena Jaraguá, a artesã Irene e os líderes Sônia Barbosa e David Karai Popygua marcaram presença no evento "Tepi - Teatro e os povos indígenas: encontros de resistência" ocorrido no SESC Pompeia, em São Paulo, na noite do dia 11 de outubro de 2018.

Líder guarani jaraguense, David Karai Popygua, no SESC Pompeia. Foto: Marinaldo Gomes Pedrosa
Líder guarani jaraguense, David Karai Popygua, no SESC Pompeia.
Foto: Marinaldo Gomes Pedrosa
Líder guarani jaraguense, Sônia Barbosa, no evento Tepi. Foto: Marinaldo Gomes Pedrosa
Líder guarani jaraguense, Sônia Barbosa, no evento Tepi.
Foto: Marinaldo Gomes Pedrosa
Durante o encontro, no principal espaço de convivência do SESC, houve exposição e venda de artesanato produzido nas aldeias da TI Jaraguá, "esses itens foram produzidos por mim, por meu marido e minha filha", disse Irene ao Jaraguá SP Post.

Artesã guarani jaraguense, Irene, no encontro Tepi. Foto: Marinaldo Gomes Pedrosa
Artesã guarani jaraguense, Irene, no encontro Tepi.
Foto: Marinaldo Gomes Pedrosa
Artesanato de Irene, no Tepi. Foto: Marinaldo Gomes Pedrosa
Artesanato de Irene, no Tepi.
Foto: Marinaldo Gomes Pedrosa
No mesmo saguão, os organizadores do encontro exibiram o filme "Martírio", de autoria de Vincent Carelli, Tita e Ernesto Carvalho. Este último esteve presente no evento, tendo - ao final do filme - composto uma mesa de diálogo com o público ao lado da antropóloga e professora doutora emérita da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Carmen Junqueira.

Completaram a mesa, a líder indígena formada em Letras, premiada com o Prêmio Ordem do Mérito Cultural e candidata a vice-presidente do Brasil pelo Psol nas eleições de 2018, Sônia Guajajara; o líder guarani-jaraguense David Karai Popygua; e a atriz e escritora Rita Carelli, que atuou como mediadora.

Jaraguá Guarani: o discurso de David Karai Popygua

No Tepi, quando Rita Carelli pediu para David compartilhar a experiência dele como liderança indígena no Jaraguá, ele deu a seguinte resposta:
Boa noite! Eu tenho 30 anos assim como algumas pessoas daqui. Gostaria de fazer uma reflexão com vocês. Penso que os filmes com o tema "Guarani" são um pouco pesados, não é? É muito difícil segurar a emoção porque o que a gente ouve dos nossos avós é que o período do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e o segundo período da Ditadura Militar foram muito tristes.
Os relatos dos nossos avós são, no entanto, relatos que nos trazem mais força para lutar contra essa forma de domínio dos juruás (não índios) em relação ao nosso território; de lutar contra essa tentativa de acabar com o nosso povo, com o nosso modo de vida, com a nossa história.

Diálogo pós-filme no evento Tepi. Foto: Marinaldo Gomes Pedrosa
Diálogo pós-filme no evento Tepi.
Foto: Marinaldo Gomes Pedrosa
Para nós que vivemos na comunidade Guarani, nós contamos com a sabedoria dos xeramoi (pagés guaranis), os quais mesmo diante de tudo o que se passou, diante de uma forma de organização cultural tão violenta e tão assassina, e diante de mentes tão cruéis, ainda assim, eles nos ensinam o amor, nos ensinam a paz, nos ensinam a não-violência. Então, a gente vem com essa ideia de não-violência, não-ataque e da resistência por meio da fé, da nossa espiritualidade.
Quando criança, um fato que me marcou muito foi quando em 1996 o índio Galdino Jesus dos Santos (liderança da etnia Pataxó-hã-hã-hães) foi queimado vivo por cinco assassinos na cidade de Brasília. Naquela época, minha aldeia (Tekoa Ytu) no Jaraguá ainda não possuía escola, então eu estudava fora. Lembro que as crianças ficaram esperando minha chegada para me humilharem. Elas diziam "Ah, seu pai morreu queimado", "Índio tem que morrer queimado mesmo", "E a sua mãe, já foi queimada?", "Vamos matar o índio queimado", "O David é índio e o pai dele morreu queimado". Isso ficou na minha cabeça.
Mais tarde, quando entrei na pré-adolescência, comecei a acompanhar minha avó, a cacique Jandira, que hoje não está mais entre nós. Ela sempre me orientava. Assim, com a ajuda dela, consegui continuar frequentando a escola para aprender a ler e escrever, coisas que ela não sabia.
Eu ainda era muito novo, mas ela confiava que eu lesse os documentos que nos eram enviados pelos juruás. Porque com documentos os juruás enganaram nosso posso muitas vezes. Muitos foram os roubos de terras e muitas coisas ruins ocorreram por via desses documentos. Porque o juruás expulsavam e matavam, mas depois eles tinham um documento para comprovar que aquela terra era deles. Então, o valor desse documento, historicamente a gente entende que foi o sangue do nosso povo.
A minha avó tinha muito receio de qualquer documento. Ela não sabia o que aquilo significava e, por isso, me pedia para ler. E foi assim que comecei a me envolver com as questões relacionadas às lutas pelos nossos direitos. Isso me motivou a conhecer o que é essa relação com o documento, o papel dos juruás.
Logo passei a ler os documentos para minha avó. Eu lia sempre em sussurros porque ela tinha medo que se falasse em voz alta sobre esses documentos. Passei a ter essa função de ler e explicar para que, em seguida, ela pudesse pensar qual decisão iria tomar.
Lá pelos 16 ou 17 anos, comecei a participar das reuniões na comunidade. Os líderes mais antigos não queriam me dar muito espaço. Eu queria falar, mas eles não deixavam porque comumente a liderança costuma ser exercida por pessoas mais velhas. Mas a vontade de defender a nossa comunidade perdurou em mim porque eu via a angústia da minha avó.
Por mais que minha avó soubesse falar um pouquinho em Português, ela não conseguia expressar os sentimentos dela neste idioma. Ela tinha muitas dificuldades e, por isso, resumia o que tinha para dizer, "meu sonho é que o povo e o governo brasileiro aprendam a respeitar o povo Guarani, os meus netos, a nossa comunidade, e que nos deixem viver em paz", ela costumava falar.
Ela dizia que não tínhamos mais caça, citava os problemas relacionados à água; dizia que a cidade estava aumentando muito. Cresci ouvindo essas coisas e quando comecei a falar, causei muito espanto nos demais líderes e nos juruás que iam para a aldeia, pois eu ficava bravo com tudo isso. O pessoal da Funai e da Funasa queriam ir embora sem resolver nossos problemas de Saúde e eu queria brigar com eles para que tudo pudesse ser resolvido imediatamente.
Mas, enfim, por que eu estou compartilhando isso? Por que minha avó faleceu em 2012 e eu senti o peso da responsabilidade de continuar levando adiante o que ela acreditava, que é a luta por respeito e pela garantia do nosso território.
Não demorou muito e comecei a receber convites para ir à Brasília. A primeira vez que estive lá foi em 2014. Na oportunidade, conheci a guerreira Sônia Guajajara, que tanto me inspira. Mas também levei um baque na minha primeira vez naquela cidade, pois fui preso. Essa foi a minha recepção.

David em discurso no Tepi. Foto: Marinaldo Gomes Pedrosa
David em discurso no Tepi.
Foto: Marinaldo Gomes Pedrosa
Quando cheguei em Brasília, vi como o Estado ataca nosso povo usando a sua força militar. Vi militares agredindo mulheres indígenas com cassetete e spray de pimenta. Tentei defender essas mulheres. Entrei em um confronto com a Polícia Militar.
Na frente do Ministério da Justiça havia vários militares com toucas e metralhadoras. Eles me pegaram lá junto com outros parentes. Prenderam cinco guerreiros. Cortaram meu cocar e meus colares com facas e os jogaram no chão.
Quando já estava algemado dentro da viatura, eles jogaram spray de pimenta nos meus olhos e no nariz, mas eu não me desesperei porque nós guaranis somos movidos pela fé. A fé sempre vai nos mover e, por isso, nós estamos dispostos a defender o nosso território.
Nós defendemos o nosso território pela fé e não por meio de documentos como fazem os juruás. É com a força, com o espírito dos xeramoi que nos enviam e nos dão a certeza de que iremos voltar, é com a reza deles, que nós nos inspiramos.
Outra coisa que ocorreu enquanto era preso é que ouvi vários policiais que diziam que viriam para São Paulo, que iriam matar, que aqui também tinha polícia. Eles me xingaram de todos os nomes que vocês imaginarem. E aquele cocar com o qual fui para Brasília era o mesmo que o meu filho mais velho tinha muito orgulho e que dizia que iria usar um dia, porém, os policiais pisaram em cima da pena de arara e levaram o cocar para eles.
Isso é um pouquinho da minha história para vocês entenderem o que tenho observado nessa relação com os juruás, situação na qual ao sair da aldeia para a escola já se é atacado e discriminado; e na qual fui preso em Brasília. É para vocês entenderem também como é buscar forças para viver com essa situação de sempre estar sendo ameaçado.
A respeito do nosso território em Jaraguá, ele foi demarcado em 1987 com apenas 1,7 hectares. É a menor terra indígena do país. Sempre tentei entender o motivo dessa demarcação tão pequena. Quando criança, eu pensava, "Será que foi o meu avô que não quis que fosse demarcada uma terra maior?".
Estudei e entendi o que ocorreu naquela época. Segundo relatos que ouvi de dois xeramois, antes da Ditadura, o SPI matava os guaranis que eram sabidos demais. Sendo assim, os guaranis não podiam falar, não podiam ser sabidos, não podiam defender a comunidade. As lideranças eram assassinadas, elas desapareciam.
Um dos xeramois me disse que quando ele era criança, o chefe do posto do SPI passou com um trator em cima do cacique na frente de toda a aldeia, no Paraná. Ouvi outro relato de que havia um bananal de 4 hectares do povo Guarani no Paraná, o qual foi dominado pelo SPI, que loteou e cedeu aos fazendeiros. Os guaranis que pegavam bananas ali passaram a ser assassinados.
Ouvi que, no período da Ditadura, a irmã da minha avó estava com o marido dela em São Vicente, na rua, quando foram pegos pelos militares. Deixaram ela na aldeia e vendaram seu marido. Levaram-no para um lugar em São Paulo, que ele não sabia explicar onde era. Quando chegou lá, ele disse que ouvia crianças e mulheres gritando e chorando desesperadamente. Ele disse que apanhou vendado. Lhe deram choques. Estupraram-no. Depois o soltaram na rua. Voltou para a aldeia com hemorragia interna e morreu dois dias depois. Ouvi essa história há menos de um mês.
Dessa forma, entendo que essa demarcação de terra tão pequena no Jaraguá é assim porque o Estado no período da Ditadura fazia esse tipo de coisas conosco. E este filme que acabamos de ver nos revela que tudo isso é verdade. Muitos guaranis sumiram. Não se podia caçar. Se saísse para caçar e demorasse para voltar corria-se o risco de ser morto. Não se podia plantar e nem sair desse lugar. Então, não foi uma demarcação. Na verdade, foi uma imposição.
Trata-se de um modelo integracionista, isto é, eles queriam que nós perdêssemos o nosso modo de vida para vivermos como os juruás. Eles queriam que deixássemos de ter a nossa cultura, o nosso plantio, o nosso jeito de ser. Por isso, o espaço de terra demarcado foi tão pequeno.
O Jaraguá tem apenas 1,7 hectares, mas nós vamos defender essa terra indígena com as nossas vidas porque é o que nós temos para defender. Um pouco da dignidade que temos é aquele pedacinho de terra.
A cidade de São Paulo tem hoje cerca de 14 milhões de pessoas, dentre as quais apenas 2 mil guaranis. Só tem duas terras guaranis em São Paulo. Somos o último povo originário remanescente desta cidade cruel, que exterminou quase todos os povos indígenas daqui para construir toda essa selva de pedra que vemos hoje.
Nós guaranis somos muito resistentes a este modelo desenvolvimentista de progresso dos juruás. Já chegamos ao ponto em que estamos de alguma forma conseguindo conscientizar a sociedade acerca do que representou esses governos fascistas.
Nós não esperávamos que haveria um governo pior do que o outro. Não esperávamos que haveria um SPI,  que roubou nossas terras. Não esperávamos que haveria uma Ditadura. Não esperávamos que haveria uma Constituinte e depois uma bancada ruralista com mais de 800 projetos de lei anti-indígenas no Brasil voltados para acabar com nossos direitos constitucionais. Não esperávamos que tantas lideranças seriam assassinadas. Mesmo com a Constituinte, o Judiciário, o Legislativo e o Executivo não punem as pessoas que matam, que violam os direitos humanos dos povos indígenas no Brasil.
Nós não esperávamos que esse candidato que está aí também chegasse a ter o apoio da sociedade brasileira, mesmo ele apresentando uma proposta de tortura, de violência, de genocídio aos povos indígenas. Todo ataque é direcionado à população indígena, aos negros, às mulheres. Este candidato é declaradamente contra a existência indígena. Estamos observando que estamos há menos de um mês de uma eleição que pode conferir poder para esse tipo de governo.
Nossa esperança e nossa fé são os nossos xeramois, as nossas rezas, as nossas crianças, a nossa comunidade. São essas coisas que nós colocamos nos nossos corações para que assim possamos continuar lutando. Infelizmente, vemos uma grande parcela da população brasileira que não está preocupada com os povos indígenas, que não têm preocupação com a história do Brasil. Esse é o nosso apelo: que as pessoas tenham mais consciência do que representou esses governos militares.
Por isso, acho que esse filme que acabamos de ver é muito importante para todo o povo ter uma clareza do que aconteceu naquela época sombria. Porque nós falamos, mas as pessoas não se sensibilizam com isso. O que fica aqui de mensagem para vocês é que nós povos indígenas nunca sabemos o que os juruás vão inventar para acabar com a gente, mas nós sabemos a receita para continuarmos existindo, que é fé em Nhanderú (Deus para os guaranis), que é a coragem da união do nosso povo (de nos reconhecermos como iguais como um povo só).
Essa é a nossa consciência que continuaremos mantendo para que possamos dar mais voz para os indígenas e assim conseguirmos cada vez mais fortalecer essa nação que me parece que hoje está completamente dividida. Mas nós guaranis estamos juntos e  queremos vocês junto com a gente para construirmos uma pais melhor.

O evento Tepi

Tepi no SESC Pompeia em 2018

O evento Tepi, realizado no SESC Pompeia, abrangeu quatro encontros:
  • O corpo "Não colonizado" indígena - 09.out.2018
  • Seria o teatro um lugar de representatividade para os povos indígenas? - 10.out.2018
  • Por uma proposta de vida antidesenvolvimentista - 11.out.2018
  • Atos ancestrais e artísticos como formas de resistência - 12.out.2018


Sobre o Autor:
Marinaldo Gomes Pedrosa Marinaldo Gomes Pedrosa é formado em Jornalismo pela UniSant'Anna. Vive no bairro Jaraguá desde 1976.

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