Daniel Kidder no Jaraguá: um relato de 1839

Entre os anos 1836 e 1842, o missionário metodista norte-americano Daniel Parish Kidder (1815-1891) esteve em viagem pelo Brasil, tendo passado em 1839 pelo Jaraguá, São Paulo. Ao retornar aos Estados Unidos, Kidder escreveu o livro "Reminiscências de Viagens e Permanências no Brasil” (1845), no qual dedicou várias páginas ao Jaraguá.

No trecho que você lerá em seguida, o qual foi obtido por meio do Atlas dos Viajantes no Brasil, Kidder expõe como era a vida na fazenda de Dona Gertrudes aos pés do Pico do Jaraguá. Ele faz menção à senzala dos negros, plantações de café e cana de açúcar, engenho de cachaça e ao processo de fabricação de farinha de mandioca realizado no lugar.

Engenho de mandioca (gravura extraída do livro de Kidder)
Engenho de mandioca
(gravura extraída do livro de Kidder)
Além disso, Kidder informa como eram as minas de ouro locais e revela como foi uma reunião social da qual participou há quase duzentos anos na fazenda de Dona Gertrudes Jordão que, por sua vez,  hoje nomeia uma rua próxima à igreja matriz Paróquia Nossa Senhora da Conceição.

Daniel Kidder no Pico do Jaraguá (relato de 1839)

Confira agora o relato das vivências de Daniel Kidder na Fazenda Jaraguá SP em 1839. Boa leitura:

Entre as excursões que fizemos pelas circunvizinhanças de São Paulo, uma das mais interessantes foi às velhas minas de ouro do Jaraguá. Estão situadas a cerca de três léguas, no sopé da montanha que lhes dá o nome e que se avista distintamente da cidade, em direção Noroeste.

Essas minas, de ouro lavado, foram as primeiras descobertas no Brasil. Produziram muito durante a primeira parte do século dezessete e, as grandes quantidades de ouro de lá canalizadas para a Europa grangearam para a região o cognome de segundo Peru; tiveram, além disso, o mérito de incentivar a exploração do interior da qual resultou a localização de diversas zonas auríferas em Minas Gerais.

Há muito que as minas do Jaraguá já não mais são trabalhadas com regularidade, e, atualmente, pertencem a uma viúva que lá possui uma fazenda com a área aproximada de uma légua quadrada.

Ao atingir o pico da montanha, os nossos companheiros soltaram um grito estrídulo e pediram-nos um lenço com que acenar para os moradores, lá em baixo, em sinal de triunfo.

O pico do Jaraguá é o mais alto de toda a região e está situado na extremidade sulina da Serra da Mantiqueira. Chamam-no o barômetro de São Paulo porque, quando o seu cume está límpido, é sinal de bom tempo, mas, quando está envolto em nuvens, é mau o prognóstico. Além disso é o marco dos viajantes que de qualquer ponto em que se achem por ele se orientam e calculam a distância que ainda falta para chegar a São Paulo.

Daniel Kidder
Daniel Kidder
O panorama que daí descortinamos era de beleza e variedade indescritíveis, e, compensou-nos cem vezes o esforço da escalada. Não muito ao longe, do lado de trás, avistamos diversas "lavradas", ou lugares onde lavavam ouro, que, tendo sido extensivamente utilizados em tempos remotos, deixaram o solo revolvido e nu.

Na direção oposta repousa a capital da província, estendida sobre a encosta antigamente denominada Campos de Piratininga. Avistavam-se também as localidades de Campinas, Itu, Sorocaba, Santo Amaro e Mogi das Cruzes.

O aspecto geral da região assemelhava-se vagamente ao de algumas que visitamos no hemisfério setentrional, e, dada a impossibilidade de distinguirmos qualquer objeto, a não ser algumas plantas à borda dos precipícios, pela primeira vez durante a nossa permanência no Brasil, poderíamos ter imaginado que avistávamos um trecho dos nossos Estados Unidos.

Num último relance vimos, cercada de montanhas, toda a vasta zona ao alcance da vista, enquanto que a região intermediária desdobrava numa sucessão interminável de vales e de montanhas. Aqui e ali podiam-se divisar brechas angulares abertas pelos lavradores à orla da mata, e a beleza e o encanto do panorama eram consideravelmente realçados pelos cursos sinuosos e brilhantes dos rios Tietê e Pinheiros.

A  excursão ao Jaraguá nos proporcionou excelente oportunidade de observar a disposição das plantações no interior. Esse arranjo difere, nos vários países, segundo o clima, as culturas e desenvolvimento da agricultura.

Na fazenda de Dona Gertrudes [Jordão] cultivavam cana de açúcar, mandioca, algodão, arroz e café. Ao redor da sede viam-se numerosas construções, tais como a senzala dos negros, armazéns para os diversos produtos e o maquinário necessário para pô-los em condições comerciáveis.

O engenho de cachaça era o lugar onde se destilava o caldo da cana de açúcar. Na maioria das fazendas de cana existe a destilaria onde se converte o melaço que sai do açúcar, numa espécie
de álcool a que chamam cachaça. Nesta fazenda, porém, quer fosse pela sua proximidade do mercado ou por algum motivo econômico, nada mais se fabricava a não ser cachaça.

A moenda de cana era de construção rude e primitiva, não diferindo muito dos engenhos de cidra, nos Estados Unidos. Era acionada a bois. O cheiro de álcool que daí provinha invadia tudo na fazenda.

Despertou-nos vivo interesse a fabricação da farinha de mandioca. Esse vegetal (Jatropha manihot L.) é o principal farináceo do Brasil, e, por isso merece especial destaque. Sua peculiaridade consiste na existência de um terrível veneno, a par de qualidades altamente nutritivas.

A mandioca é de difícil cultivo, necessitando, as espécies mais comuns, de doze a dezoito meses para amadurecer. Suas raízes são muito propensas a se alastrarem. Por esse motivo é cultivada de preferência nas colinas, que além de contrariarem essa tendência natural da planta proporcionam-lhe terra mais seca, que é o que a planta prefere. Quando arrancadas, as raízes apresentam uma contextura fibrosa semelhante das árvores.

O processo da preparação da farinha, na fazenda do Jaraguá, consistia, primeiramente em cozer as raízes para remover a casca e depois ralá-las, comprimindo-as com a mão contra um ralo circular, movido a água. A farinha assim obtida era então acondicionada em sacos próprios, diversos dos quais eram apertados em conjunto, numa prensa de rosca, acionada a mão, para expelir o caldo.

A massa solidificada pela pressão era depois moída em pilões e colocada em fornos abertos aquecidos por baixo, onde a farinha, revolvida constantemente, logo secava.

Quando bem preparado, o produto oferece uma bela aparência alvacenta, apesar de que suas partículas são mais ou menos grosseiras.

A farinha de mandioca é encontrada em todas as mesas brasileiras e com ela se preparam diversos pratos saudáveis e saborosos.

A substância fina que assenta do caldo da mandioca, quando aproveitado, é o que chamam tapioca e constitui atualmente valioso artigo de exportação.

As reuniões sociais que nos proporcionaram no Jaraguá não foram de maneira alguma comuns. Quem quer que contemplasse a quantidade de pessoas que enchia a casa, quando estávamos todos reunidos, dificilmente compreenderia a queixa dos brasileiros com relação ao seu país, isto é, de que seu maior mal está na escassez de população.

A parte os viajantes e naturalistas e a chusma de domésticos e crianças - cada um dos quais, preto ou branco, se empenhava em fazer mais barulho que os outros - lá estavam várias senhoras parentes da dona da casa, que tinham ido da cidade especialmente para a ocasião.

Entre os homens, contavam-se três filhos da fazendeira, seu genro, bacharel em direito, o capelão que também era professor da Universidade de Direito e, finalmente um doutor em teologia. Com tão interessante companhia, dificilmente a nossa permanência na fazenda poderia deixar de ser agradável.

Sendo nós os únicos estrangeiros que se podiam expressar no idioma nacional - que os brasileiros preferem chamar de Língua Portuguesa -  coube-nos, durante maior parte do tempo, entreter as senhoras ou de ser por elas obsequiado, e, é com prazer que declaramos nada ter notado daquele excessivo acanhamento que alguns escritores afirmam constituir um dos característicos da mulher brasileira.

É verdade que as mocinhas dificilmente iam além de um sim senhor, ou não senhor, mas, a extrema sociabilidade de Dona Gertrudes compensava esse retraimento. A proprietária fez-nos, muito espontaneamente, uma completa exposição dos seus negócios, mostrou-nos, ela mesma os seus tesouros agrícolas e minerais e parecia ter a maior satisfação em divulgar os resultados de sua experiência em qualquer campo.

Presenciamos a lavagem do ouro, certa manhã bem cedo, antes que o calor do sol perturbasse o trabalho. A lavra estava situada num terreno de aluvião, ao pé da montanha. Pequena é a quantidade do precioso metal que aí se obtém de mistura com o cascalho; mas, por outro lado é encontrado em partículas que variam em dimensões desde a mais fina poeira até o tamanho de um chumbo grosso ou de uma ervilha.

O solo é vermelho e ferruginoso, sendo o ouro às vezes encontrado à flor da terra, mas, em geral envolto em uma camada de pedregulhos roliços, como os em que se encontram diamantes e que se denominam cascalhos.

É muito simples o sistema de procurar o precioso metal escondido no meio da impureza. Em primeiro lugar é necessário que haja um córrego cujo leito seja suficientemente alto para que possa ser desviado por meio de calhas ou de encanamentos para o topo da escavação. A terra é então cortada em degraus de 20 ou 30 pés (6 a 9 mt) de comprimento, dois ou três de largura (60 ou 90 cms.) e cerca de 1 pé (30,48 cm) de altura.

Estavam paralisados os trabalhos das minas, quando as visitamos. O aspecto do local era solitário mas grandioso. As largas e profundas escavações, os canais vazios, os leitos secos dos riachos e os enormes montes de cascalho, tudo estava imerso em silêncio, mas lembrava aquela "sacra auri fames" que em todos os tempos e países encontrou abrigo no coração do homem.

A própria terra parecia lamentar a desolação a que devotaram seu seio dadivoso, há tanto tempo - senão para sempre - despido de vegetação, como ingrata recompensa pelos tesouros que desvendou.
Fonte:
KIDDER, Daniel. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil. Editora Itatiaia limitada; Editora da Universidade de São Paulo, 1980,  212; 214-216; 219; 220-224. Obra(s) relacionada(s): https://digital.bbm.usp.br/browse?type=author&value=Kidder%2C+Daniel+P.%2C+1815-1891

Sobre o Autor:
Marinaldo Gomes Pedrosa Marinaldo Gomes Pedrosa é formado em Jornalismo pela UniSant'Anna. Vive no bairro Jaraguá desde 1976.

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