Em outubro de 1807 - três meses antes da família real portuguesa chegar ao Brasil em uma cinematográfica escapada do exército de Napoleão Bonaparte (1769-1821) - o naturalista, mineralogista e comerciante de minerais britânico, John Mawe (1764-1829), pisou em solo jaraguense com a finalidade de observar o funcionamento das minas de ouro locais.
Vale mencionar, quando em 1804 Mawe partira de Londres para uma viagem de seis anos pela América do Sul, ele já possuía no currículo múltiplas viagens náuticas para Marrocos, Jamaica e Bombaim, além de turnês pela Inglaterra, Escócia, País de Gales e Paris. Assim, ele próprio enquanto viajante era uma joia em constante processo de lapidação.
Com efeito, uma vez no Brasil, Mawe visitou Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, lugares onde coletou minerais e conchas. Além disso, ele observou, aprendeu e produziu vasto conteúdo, dentre os quais o livro “Viagens ao interior do Brasil” (1812), obra da qual o relato sobre o Jaraguá que você lerá em seguida foi extraído (via site Atlas dos Viajantes no Brasil, da USP).
Em seu relato, Mawe aborda a escavação em degraus dos pontos de lavagem de ouro (vide gravura) no Jaraguá, ele explica como era o trabalho dos escravos negros nas minas, menciona o uso da bateia, tece comentários sobre os vigias que ficavam de olho na operação, informa sobre a separação de um quinto do ouro obtido para o Príncipe e a troca do ouro na Casa da Moeda, entre outras coisas.
O mineralogista britânico revela, ainda, que a Fazenda Jaraguá possuía na época 75 trabalhadores, sendo 50 escravos negros e 25 índios livres. Estes últimos recebiam para trabalhar.
Antes de prosseguir, enfim, uma curiosidade extra: muitas das ilustrações dos livros de Mawe eram produzidas por James Sowerby (1757-1822), que era bastante detalhista. Na gravura que abre este artigo possivelmente criada pelo próprio, por exemplo, nota-se a silhueta de uma araucária (à direita), que era abundante na região de São Paulo naquele período e que hoje encontra-se em extremo risco de extinção.
Fique agora com o relato de John Mawe!
O governador [na época Antônio José Correia da Franca e Horta] me convidou para visitar as antigas minas de ouro do Jaraguá, as primeiras descobertas no Brasil, que agora eram propriedade dele, junto com uma fazenda na vizinhança, distante cerca de 44 quilômetros [talvez a metade disso] da cidade.
Viajamos por uma estrada regular e, em alguns lugares, por uma boa estrada, em direção ao sul, por 20 quilômetros e cruzamos o Tietê.
Este rio é aqui consideravelmente maior e mais profundo do que no centro de São Paulo. Possui uma excelente ponte de madeira, sem pedágio. Nas suas margens existem algumas situações verdadeiramente invejáveis; finas terras virgens ricas, cobertas de madeira e capazes de produzir, não apenas os necessários, mas os luxos da vida, em cem vezes, se adequadamente cultivados.
Era melancólico contemplar um território que, por seu solo fervilhante e clima genial, merece ser chamado de paraíso, negligenciado e solitário como o do Éden após o fracasso; enquanto seus possuidores apaixonados, como os descendentes de Caim, famintos por ouro, mantinham-se afastados do rico banquete que a natureza aqui espalhou diante deles.
Depois de viajar quatro léguas, chegamos às antigas minas do Jaraguá, famosas pelos imensos tesouros que produziram há quase dois séculos, quando nos portos de Santos e São Vicente, de onde o ouro era enviado para a Europa, este distrito era considerado como o Peru do Brasil.
A face do país é desigual e bastante montanhosa. A rocha, onde é exposta, parece ser granito primitivo, inclinado a gnaisse, com uma porção de hornblenda e frequentemente mica. O solo é vermelho e notavelmente ferruginoso, em muitos lugares aparentemente de grande profundidade. O ouro repousa, em grande parte, em um estrato de seixos e cascalho arredondados, chamado cascalho, imediatamente imputado à rocha sólida.
Nos vales, onde há água, ocorrem escavações frequentes, feitas pelos garimpeiros, em considerável extensão, algumas delas com 15 ou cem pés de largura e 18 ou 20 de profundidade. Em muitas das colinas, onde a água pode ser coletada para lavagem, partículas de ouro são encontradas no solo, um pouco mais profundas do que as raízes da grama.
O sistema de trabalho nestas minas, mais apropriadamente chamado de lavagem, é simples e pode ser facilmente descrito: suponha-se um stratum de cascalho solto e seixos redondos, de quartzo e substâncias adventícias, sobrepostos ao granito, e coberto por substância terrosa de espessura variável.
Nos pontos em que a água se encontra num nível suficientemente elevado para ser dirigida, o terreno é escavado em degraus, cada um dos quais com 20 a 30 pés de comprimento, dois ou três de largura e mais ou menos um de altura.
Próximo ao fundo abre-se uma trincheira com cerca de dois a três pés de profundidade. Em cada degrau ficam seis ou sete [escravos] negros que, a medida que a água corre, colina abaixo, conservam a terra continuamente em movimento, com auxílio de pás, até que fique reduzida a uma água lamacenta, levada mais abaixo.
As partículas de ouro existentes nesta terra descem à trincheira, onde, devido à sua gravidade específica, precipitam-se rapidamente. Os trabalhadores estão sempre ocupados, na trincheira, em remover o cascalho e limpar a superfície, operação esta grandemente auxiliada pela corrente d'água que cai sobre ela.
Depois de cinco dias de lavagem, a precipitação da trincheira é carregada para uma corrente apropriada, a fim de ser submetida a uma segunda purificação. Para esse fim empregam-se recipientes de madeira, afunilados, com a abertura de dois pés e cinco ou seis polegadas de profundidade, chamados bateias.
Cada trabalhador, de pé, na corrente, apanha com sua bateia cinco ou seis libras de cascalho, geralmente constituído de substâncias pesadas, de cor escura carbonada, tais como óxido de ferro, pirita, quartzo etc.; deixando penetrar certa quantidade de água nas bateias imprimem-lhes um movimento circular, com tal destreza, que o precioso metal, separando-se das substâncias inferiores e mais leves, deposita-se no fundo e nos lados da vasilha.
A seguir enxaguam os recipientes num recipiente maior, com água limpa, aí ficando o ouro e recomeçam a mesma operação. Na lavagem de cada vaso leva-se de cinco a oito ou nove minutos.
O ouro obtido é muito variável, tanto em qualidade quanto no tamanho das partículas, algumas das quais tão pequenas que flutuam, enquanto outras atingem dimensões de peras e não raro até maiores.
Esta operação é superintendida por vigias por ser o resultado de importância considerável.
Tudo terminado, leva-se o ouro para casa, a fim de secá-lo e, na ocasião propícia, conduzi-lo ao escritório de troca, onde é pesado, reservando-se um quinto para o Príncipe.
Reúne-se o restante pela fusão com muriato de mercúrio, reduzindo-o a barras, dando-se o toque e selando-se, de acordo com seu valor intrínseco; com ele fornece-se um certificado; após a prova da entrada desse documento na Casa da Moeda, as barras passam a circular como moeda corrente.
[...]
Esta fazenda possui a melhor madeira dos arredores. Quando os melhoramentos, começados pelo governador, completarem, será abastecida de água, trazida de uma distância de seis milhas, em quantidade suficiente para banhar as colinas e pôr em movimento a maquinária de uma moenda de cana.
Nela estão empregados cerca de cinquenta escravos negros e a metade deste número de índios livres; os últimos alimentam-se às custas do patrão e ganham de seis pence [moeda do Reino Unido] por dia; mas parecem mais bem laboriosos e capazes do que os negros. Eles estavam limpando o terreno e abrindo, nas matas, caminhos que quando terminados, transformariam o lugar num agradabilíssimo retiro de verão.
Sobre o Autor:
Lavagem de ouro em Jaraguá SP. Fonte: Viagens ao interior do Brasil, de John Mawe |
Com efeito, uma vez no Brasil, Mawe visitou Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, lugares onde coletou minerais e conchas. Além disso, ele observou, aprendeu e produziu vasto conteúdo, dentre os quais o livro “Viagens ao interior do Brasil” (1812), obra da qual o relato sobre o Jaraguá que você lerá em seguida foi extraído (via site Atlas dos Viajantes no Brasil, da USP).
Em seu relato, Mawe aborda a escavação em degraus dos pontos de lavagem de ouro (vide gravura) no Jaraguá, ele explica como era o trabalho dos escravos negros nas minas, menciona o uso da bateia, tece comentários sobre os vigias que ficavam de olho na operação, informa sobre a separação de um quinto do ouro obtido para o Príncipe e a troca do ouro na Casa da Moeda, entre outras coisas.
O mineralogista britânico revela, ainda, que a Fazenda Jaraguá possuía na época 75 trabalhadores, sendo 50 escravos negros e 25 índios livres. Estes últimos recebiam para trabalhar.
Antes de prosseguir, enfim, uma curiosidade extra: muitas das ilustrações dos livros de Mawe eram produzidas por James Sowerby (1757-1822), que era bastante detalhista. Na gravura que abre este artigo possivelmente criada pelo próprio, por exemplo, nota-se a silhueta de uma araucária (à direita), que era abundante na região de São Paulo naquele período e que hoje encontra-se em extremo risco de extinção.
Fique agora com o relato de John Mawe!
- Acesse e leia também o post “Daniel Kidder no Jaraguá: um relato de 1839”. Fique sabendo, assim, como este missionário norte-americano retratou a Fazenda Jaraguá no período.
John Mawe no Jaraguá SP (relato de 1807)
Confira agora o relato das vivências de John Mawe nas minas de ouro do Jaraguá SP em 1807. Boa leitura!O governador [na época Antônio José Correia da Franca e Horta] me convidou para visitar as antigas minas de ouro do Jaraguá, as primeiras descobertas no Brasil, que agora eram propriedade dele, junto com uma fazenda na vizinhança, distante cerca de 44 quilômetros [talvez a metade disso] da cidade.
Viajamos por uma estrada regular e, em alguns lugares, por uma boa estrada, em direção ao sul, por 20 quilômetros e cruzamos o Tietê.
Este rio é aqui consideravelmente maior e mais profundo do que no centro de São Paulo. Possui uma excelente ponte de madeira, sem pedágio. Nas suas margens existem algumas situações verdadeiramente invejáveis; finas terras virgens ricas, cobertas de madeira e capazes de produzir, não apenas os necessários, mas os luxos da vida, em cem vezes, se adequadamente cultivados.
Era melancólico contemplar um território que, por seu solo fervilhante e clima genial, merece ser chamado de paraíso, negligenciado e solitário como o do Éden após o fracasso; enquanto seus possuidores apaixonados, como os descendentes de Caim, famintos por ouro, mantinham-se afastados do rico banquete que a natureza aqui espalhou diante deles.
John Mawe |
A face do país é desigual e bastante montanhosa. A rocha, onde é exposta, parece ser granito primitivo, inclinado a gnaisse, com uma porção de hornblenda e frequentemente mica. O solo é vermelho e notavelmente ferruginoso, em muitos lugares aparentemente de grande profundidade. O ouro repousa, em grande parte, em um estrato de seixos e cascalho arredondados, chamado cascalho, imediatamente imputado à rocha sólida.
Nos vales, onde há água, ocorrem escavações frequentes, feitas pelos garimpeiros, em considerável extensão, algumas delas com 15 ou cem pés de largura e 18 ou 20 de profundidade. Em muitas das colinas, onde a água pode ser coletada para lavagem, partículas de ouro são encontradas no solo, um pouco mais profundas do que as raízes da grama.
O sistema de trabalho nestas minas, mais apropriadamente chamado de lavagem, é simples e pode ser facilmente descrito: suponha-se um stratum de cascalho solto e seixos redondos, de quartzo e substâncias adventícias, sobrepostos ao granito, e coberto por substância terrosa de espessura variável.
Nos pontos em que a água se encontra num nível suficientemente elevado para ser dirigida, o terreno é escavado em degraus, cada um dos quais com 20 a 30 pés de comprimento, dois ou três de largura e mais ou menos um de altura.
Próximo ao fundo abre-se uma trincheira com cerca de dois a três pés de profundidade. Em cada degrau ficam seis ou sete [escravos] negros que, a medida que a água corre, colina abaixo, conservam a terra continuamente em movimento, com auxílio de pás, até que fique reduzida a uma água lamacenta, levada mais abaixo.
As partículas de ouro existentes nesta terra descem à trincheira, onde, devido à sua gravidade específica, precipitam-se rapidamente. Os trabalhadores estão sempre ocupados, na trincheira, em remover o cascalho e limpar a superfície, operação esta grandemente auxiliada pela corrente d'água que cai sobre ela.
Depois de cinco dias de lavagem, a precipitação da trincheira é carregada para uma corrente apropriada, a fim de ser submetida a uma segunda purificação. Para esse fim empregam-se recipientes de madeira, afunilados, com a abertura de dois pés e cinco ou seis polegadas de profundidade, chamados bateias.
Cada trabalhador, de pé, na corrente, apanha com sua bateia cinco ou seis libras de cascalho, geralmente constituído de substâncias pesadas, de cor escura carbonada, tais como óxido de ferro, pirita, quartzo etc.; deixando penetrar certa quantidade de água nas bateias imprimem-lhes um movimento circular, com tal destreza, que o precioso metal, separando-se das substâncias inferiores e mais leves, deposita-se no fundo e nos lados da vasilha.
A seguir enxaguam os recipientes num recipiente maior, com água limpa, aí ficando o ouro e recomeçam a mesma operação. Na lavagem de cada vaso leva-se de cinco a oito ou nove minutos.
O ouro obtido é muito variável, tanto em qualidade quanto no tamanho das partículas, algumas das quais tão pequenas que flutuam, enquanto outras atingem dimensões de peras e não raro até maiores.
Esta operação é superintendida por vigias por ser o resultado de importância considerável.
Amostras de minerais coletadas por Mawe em seu tour na América do Sul |
Reúne-se o restante pela fusão com muriato de mercúrio, reduzindo-o a barras, dando-se o toque e selando-se, de acordo com seu valor intrínseco; com ele fornece-se um certificado; após a prova da entrada desse documento na Casa da Moeda, as barras passam a circular como moeda corrente.
[...]
Esta fazenda possui a melhor madeira dos arredores. Quando os melhoramentos, começados pelo governador, completarem, será abastecida de água, trazida de uma distância de seis milhas, em quantidade suficiente para banhar as colinas e pôr em movimento a maquinária de uma moenda de cana.
Nela estão empregados cerca de cinquenta escravos negros e a metade deste número de índios livres; os últimos alimentam-se às custas do patrão e ganham de seis pence [moeda do Reino Unido] por dia; mas parecem mais bem laboriosos e capazes do que os negros. Eles estavam limpando o terreno e abrindo, nas matas, caminhos que quando terminados, transformariam o lugar num agradabilíssimo retiro de verão.
- Acesse e leia também "História da Estrada Turística do Jaraguá". Saiba, desse modo, como foi o processo de pavimentação da pista que vai da Rodovia Anhanguera até o platô entre os picos do Jaraguá e do Papagaio, em São Paulo.
Fonte:
MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil. Editora da Universidade de São Paulo; Editora Itatiaia Limitada, 1978, 69-74. Obra(s) relacionada(s): https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7191Marinaldo Gomes Pedrosa é formado em Jornalismo pela UniSant'Anna. Vive no bairro Jaraguá desde 1976. |
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ResponderExcluirGratidão, adorei o material, compartilhei no blog. Sucesso e ate breve.
ResponderExcluirA imagem não é de de Jown Mawe... é de James Radclyffe (3rd Earl of Derwentwater 1691-1715)
ResponderExcluirSe você ler o texto inteiro, verá que o James é citado como autor da ilustração. E a legenda, por sua vez, revela que a fonte da ilustração é o livro "Viagens ao interior do Brasil"' de autoria do Mawe. Obrigado pela participação aqui nos comentários.
ExcluirBoa Tarde, Marinaldo. Chamo-me Gleison Vieira, e sou Historiador de Garuva (SC, divisa com o Paraná). O caminho pela Serra do Mar - Caminho dos Ambrósios (um ramal do Peabiru), foi mencionado por Jown Mawe - início do Século XIX. A imagem do retrato de John Mawe representado neste seus artigo não é, em absoluto, de John Mawe, mas de James Radclyffe, o 3º Conde de Derwentwater (1689-1716), um jacobita inglês, executado por traição. A gravura é de autoria de "Sra. Thomson. Créditos das imagens Godfrey Kneller, impressor; Cozinheiro, escultor. - O Project Gutenberg EBook de Memórias dos Jacobitas de 1715 e 1745., Volume I, pela Sra. Thomson. Texto eletrônico do Projeto Gutenberg 20946". Do jeito que está disposto em seu artigo, parece que a imagem de James Radclyffe é o retrato de John Mawe. Um forte abraço!!!
ExcluirOlá, História de Garuva. Se você ler o texto inteiro, verá que cito o James. A legenda informa apenas que a foto foi retirada do livro "Viagens ao interior do Brasil". Obrigado pela participação aqui nos comentários deste blogue. Abraços!
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