Do Jaraguá sem asfalto à conexão com a Terra

Em meados do século 20, a avenida Jerimanduba foi provavelmente a primeira via asfaltada do Jaraguá SP. Mas não completamente. Um pedaço dela, que corre paralelo à ferrovia e passa por baixo do viaduto local, permaneceu sem capeamento até outubro de 2019.

Asfaltamento do último trecho da avenida Jerimanduba
Asfaltamento do último trecho da avenida Jerimanduba
Neste intervalo de tempo, mais de 1.000 prédios foram construídos na região. A população do lugar passou de 5 mil para mais de 200 mil pessoas. Foram criadas mais de 130 escolas e quase todas as ruas no espaço entre o Pico do Jaraguá e o Morro de Taipas foram pavimentadas.

Trecho em verde foi asfaltado no século passado e o amarelo em 2019
Trecho em verde foi asfaltado no século passado e o amarelo em 2019
Entretanto, em 1955, quando aos oito anos de idade a filha de imigrantes (pai italiano e mãe húngara), Antônia Aparecida Nezotto (72), chegou a este distrito, a única coisa que lhe separava da terra nua e crua eram os seus sapatos.

"Comecei a trabalhar aos 13 anos, no centro de SP, em uma fábrica de cerâmicas", diz, "e quem como eu trabalhava fora tinha que usar dois pares de sapatos". Antônia explica que naquele tempo não haviam muros na estação de trem e que muitos trabalhadores, tal qual ela, caminhavam pelos trilhos para acessar a plataforma. Antes, porém, de embarcar, eles deixavam o par de sapatos cheio de barro jaraguense em um lugar ao ar livre nas proximidades da estação. "Depois disso, nós colocávamos nos pés os sapatos extra, que estavam limpos. Aí, na volta do trabalho, nós recuperávamos os sapatos sujos, os quais estavam exatamente no mesmo lugar onde os deixávamos pela manhã", ela conta.

Mas nem todo mundo realizava este procedimento. De acordo com João Gomes Pedrosa (81), que veio de Serra da Raiz (PB) para o Jaraguá em 1969, muitos moradores entravam dentro dos raros ônibus e trens com os sapatos cheios de barro. "Eles sujavam toda a nossa roupa. Quando dávamos fé, nossas calças estavam todas cheias de lama dos sapatos dos outros".

Mato e barro. Estes eram os dois elementos mais comuns desde as primeiras décadas do distrito Jaraguá até o início dos anos 1970. E ao menos uma casa da região conserva uma ferramenta muito usada naquele período. Na residência do Sr. Nikolaos Argyrios Mitsiotis (77), na rua Turvânia, resiste encravada na terra uma trave de metal que servia para tirar a lama das galochas.

Ferramenta de Mitsiotis usada para tirar lama das galochas
Ferramenta de Mitsiotis usada para tirar lama das galochas
Contudo, pouco a pouco o asfalto tomou conta da região e isolou a terra do homem. E aí vem o contraponto. Em 2017, um importante líder da Terra Indígena Jaraguá chamado David Karai Popygua publicou um post comovente no Facebook (vide a seguir), no qual apontou a importância do contato com a Terra.


Ele conta que achou uma foto de 1953 com seus familiares descalços no centro de São Paulo. Popygua diz que mostrou a foto ao seu pai e os dois caíram em lágrimas. "Não existe terra para pisar. Na sua mão está o arco de caça, mas não há mais caça", escreve. E continua, "nós guaranis rezamos com os pés descalços na terra porque é dela que vem a nossa energia e alimento. Existe terra, sim, nesta foto. Meu tio é a terra. Nós povos indígenas somos a terra e a terra é o que somos".

Enfim, o asfalto é um dos símbolos do que chamamos de progresso. Mas quando lemos depoimentos como o de Popygua instala-se a dúvida: será que estamos mesmo progredindo? E daí podemos partir para reflexões mais profundas como: o que ocorrerá com as novas gerações (que já nascem perfeitamente conectadas à internet) se elas perderem totalmente a conexão com a Terra?

Sobre o Autor:
Marinaldo Gomes Pedrosa Marinaldo Gomes Pedrosa é formado em Jornalismo pela UniSant'Anna. Vive no bairro Jaraguá desde 1976.

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