A revolta do povão na estação Jaraguá em 1983
Quebra de trem na estação Jaraguá, em 27 de outubro de 1983. Foto: acervo Folha de S.Paulo |
Daí em diante, a situação só pioraria. E uma coisa que contribuiria para isso é que a estação do Jaraguá, construída em 1867 e remodelada em 1900 pela companhia inglesa São Paulo-Railway, possui uma característica que todo morador local conhece: a passagem de nível com as cancelas que paravam o trânsito e o barulho que avisa quando o trem está chegando (isso só mudou com a construção da ponte nos anos 2000). Foi exatamente nesta passagem de nível que outra composição que vinha do centro para o bairro estacionou e assim bloqueou a passagem de carros e pedestres. Neste momento, explodiu a revolta popular. Em 40 minutos a estação foi incendiada e depredada, bem como três trens e a casa do chefe da estação.
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Trem depredado na passagem de nível, na estação Jaraguá, em 27 de outubro de 1983. Foto: acervo Folha de S.Paulo |
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Polícia prende cidadãos durante o tumulto. Foto: acervo Jornal da Tarde |
A repressão foi intensificada quando chegaram viaturas do Tático Móvel e da Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota) disparando suas armas, dessa vez com balas de verdade. Doze pessoas se feriram e nove foram presas, dentre elas um menor.
O último ditador cumpre uma agenda festiva
Ao mesmo tempo em que se desenrolam as depredações na estação Jaraguá, o último ditador do regime militar, João Figueiredo, iniciava uma agenda de festa nos bairros nobres da cidade. Pela manhã visitou o centro de operações da empresa de transportes de um amigo, em seguida compareceu a um coquetel com 25 “empresários ricaços”, almoçou com um amigo íntimo e na parte da tarde apadrinhou outro amigo que se casou. Ele estava ciente do quebra-quebra de estações e trens, na periferia, mas nem se preocupou, apesar dos questionamentos de emissoras de rádio e televisão que realizavam ampla cobertura dos acontecimentos.![]() |
Enquanto Figueiredo cumpria sua agenda, a revolta popular se instalava. Foto: acervo Folha de S.Paulo |
Repercussão do fato na grande imprensa
As autoridades e a imprensa passaram várias semanas discutindo se aqueles eventos foram provocados por subversivos contrários à ditadura ou se foram um ato espontâneo e irracional das famílias trabalhadoras. Nesse contexto, os interlocutores chegaram a acusar o então subprefeito da região, Milton Santos [2].![]() |
No primeiro momento do fato, a imprensa trata os usuários dos trens como baderneiros. Foto: acervo Jornal da Tarde |
“O pessoal está tenso, revoltado. Um homem que chega atrasado por causa do trem e é despedido também é uma violência. Agora, o povo está pagando as dívidas que não contraiu, a situação do país é calamitosa. Mas a culpa é da política econômica que o governo adotou e faz questão de manter.”[3]
Os moradores da periferia noroeste de São Paulo efetivamente dependiam do trem para chegar ao local de trabalho. Era naquele momento a única região de São Paulo em que predominava a área rural (60% sobre a urbana). Era uma região com poucas indústrias. Havia a opção dos ônibus, mas a diferença do preço das passagens era grande, sendo Cr$ 35 o trem, enquanto variavam de Cr$ 100 e Cr$ 150 as tarifas de ônibus. Para se chegar a locais distantes o trem era fundamental. Ele era mais rápido e com poucas baldeações.
Outro trabalhador ouvido pela Folha de São Paulo foi o polidor de uma concessionária da Mercedes-Benz, José Hamilton, que tinha dois filhos e recebia uma salário de Cr$ 90 mil, “espero que o patrão veja na televisão o que aconteceu aqui para saber que não tinha jeito mesmo de eu chegar no serviço” [5], lamentava.
Referências
- [2] Milton dos Santos, negro, nascido em Limeira, veio para São Paulo na década de 1960, se filiou ao MDB e participou do Movimento Negro. Em 1983 foi nomeado pelo prefeito Mario Covas como Administrador Regional de Pirituba-Jaraguá-perus. O Coletivo Salve Kebrada realizou uma entrevista de História de vida com Milton dos Santos em 2016, que pode ser conferida nesse link. https://www.youtube.com/watch?v=jwtfXhr0xuM&t=36s
- [3] Sinto como se estivesse no meio de uma guerra. Folha de São Paulo, 29 de outubro de 1983. p.17.
- [4] Atraso causa destruição de trens em duas estações. Folha de São Paulo, 29 de outubro de 1983. p.17.
- [5] Sinto como se estivesse no meio de uma guerra. Folha de São Paulo, 29 de outubro de 1983. p.17.
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Rodrigo Gonçalves Benevenuto é mestre em História, Política e Bens Culturais pela FGV e fundador do Coletivo Salve Kebrada. |
Um video que mostra um pouco desse quebra-quebra
ResponderExcluirhttps://youtu.be/_PFGKABSgJY