A revolta do povão na estação Jaraguá em 1983

São Paulo, 27 de outubro de 1983, 5h55. Estação Jaraguá. Milhares de trabalhadores aguardam o trem, mas a composição UJ-20 que saiu da estação terminal Francisco Morato quebrou pouco antes de chegar à estação de Perus, às 5h45. Era um incômodo para os usuários. Pelo rádio, o maquinista da Rede Ferroviária Federal chamou ajuda e às 6h15 a nova locomotiva começou a rebocar o trem para a estação Jaraguá. Mas o improvável aconteceu: a locomotiva de reboque também quebrou. De súbito, aquela irritação inicial se transformou em revolta generalizada.

Quebra de trem na estação Jaraguá, em 27 de outubro de 1983. Foto: acervo Folha de S.Paulo
Quebra de trem na estação Jaraguá, em 27 de outubro de 1983.
Foto: acervo Folha de S.Paulo
Quando a composição UJ-26 chegou com uma hora de atraso e completamente lotada, as 6.000 pessoas que se aglomeravam na plataforma e nos trens começaram a depredar tudo.
Daí em diante, a situação só pioraria. E uma coisa que contribuiria para isso é que a estação do Jaraguá, construída em 1867 e remodelada em 1900 pela companhia inglesa São Paulo-Railway, possui uma característica que todo morador local conhece: a passagem de nível com as cancelas que paravam o trânsito e o barulho que avisa quando o trem está chegando (isso só mudou com a construção da ponte nos anos 2000). Foi exatamente nesta passagem de nível que outra composição que vinha do centro para o bairro estacionou e assim bloqueou a passagem de carros e pedestres. Neste momento, explodiu a revolta popular. Em 40 minutos a estação foi incendiada e depredada, bem como três trens e a casa do chefe da estação.

Trem depredado na passagem de nível, na estação Jaraguá, em 27 de outubro de 1983. Foto: acervo Folha de S.Paulo
Trem depredado na passagem de nível, na estação Jaraguá, em 27 de outubro de 1983.
Foto: acervo Folha de S.Paulo
Às 8h10 da manhã os bombeiros chegaram ao distrito Jaraguá, mas só terminaram de apagar as chamas às 11 horas. Às 8h30 a tropa de choque da Polícia Militar chegou lançando bombas de gás lacrimogêneo e distribuindo balas de borracha e cacetadas nos manifestantes. A população enfrentou os policiais atirando pedras.

Polícia prende cidadãos durante o tumulto. Foto: acervo Jornal da Tarde
Polícia prende cidadãos durante o tumulto.
Foto: acervo Jornal da Tarde


A repressão foi intensificada quando chegaram viaturas do Tático Móvel e da Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota) disparando suas armas, dessa vez com balas de verdade. Doze pessoas se feriram e nove foram presas, dentre elas um menor.

O último ditador cumpre uma agenda festiva

Ao mesmo tempo em que se desenrolam as depredações na estação Jaraguá, o último ditador do regime militar, João Figueiredo, iniciava uma agenda de festa nos bairros nobres da cidade. Pela manhã visitou o centro de operações da empresa de transportes de um amigo, em seguida compareceu a um coquetel com 25 “empresários ricaços”, almoçou com um amigo íntimo e na parte da tarde apadrinhou outro amigo que se casou. Ele estava ciente do quebra-quebra de estações e trens, na periferia, mas nem se preocupou, apesar dos questionamentos de emissoras de rádio e televisão que realizavam ampla cobertura dos acontecimentos.

Enquanto Figueiredo cumpria sua agenda, a revolta popular se instalava. Foto: acervo Folha de S.Paulo
Enquanto Figueiredo cumpria sua agenda, a revolta popular se instalava.
Foto: acervo Folha de S.Paulo
No dia seguinte, as fotos da revolta estampavam o editorial da Folha de S.Paulo, que destacava a “desconexão perigosa” entre o “mundo de fúria da periferia de São Paulo e o mundo de festa de Figueiredo”[1].

Repercussão do fato na grande imprensa

As autoridades e a imprensa passaram várias semanas discutindo se aqueles eventos foram provocados por subversivos contrários à ditadura ou se foram um ato espontâneo e irracional das famílias trabalhadoras. Nesse contexto, os interlocutores chegaram a acusar o então subprefeito da região, Milton Santos [2].

No primeiro momento do fato, a imprensa trata os usuários dos trens como baderneiros. Foto: acervo Jornal da Tarde
No primeiro momento do fato, a imprensa trata os usuários dos trens como baderneiros.
Foto: acervo Jornal da Tarde
Contudo, quase ninguém naquela época perguntou aos próprios envolvidos o motivo pelo qual haviam feito aquilo. O contexto era de tensão, fome, violência e altas taxas de desemprego. O fato é que 1983 foi um ano de grave crise econômica, de modo que ninguém queria chegar atrasado no trabalho. Sobre isso, o na ocasião padre da Igreja Nossa Senhora da Conceição, Gilberto Cavani, afirmou a uma reportagem da Folha de S.Paulo:
“O pessoal está tenso, revoltado. Um homem que chega atrasado por causa do trem e é despedido também é uma violência. Agora, o povo está pagando as dívidas que não contraiu, a situação do país é calamitosa. Mas a culpa é da política econômica que o governo adotou e faz questão de manter.”[3]
A fala de um manifestante durante os atos de depredação, mencionado pelos jornais Notícias Populares e Folha de São Paulo apenas como um “rapaz negro que gritava”, nos dimensiona para o contexto: “isso é só o começo, não dá mais para aguentar. Tem gente que já perdeu o emprego por causa dos atrasos. Era bom que o Figueiredo viesse aqui para ver de perto a situação da gente"[4]. Essa afirmação, mais do que embasar a “desconexão perigosa” entre o “mundo de festa” de Figueiredo e o “mundo de fúria” da periferia destacado pela Folha de S.Paulo, indicava que os setores populares percebiam a própria capacidade de intervenção no processo social e político vigente no país.
Os moradores da periferia noroeste de São Paulo efetivamente dependiam do trem para chegar ao local de trabalho. Era naquele momento a única região de São Paulo em que predominava a área rural (60% sobre a urbana). Era uma região com poucas indústrias. Havia a opção dos ônibus, mas a diferença do preço das passagens era grande, sendo Cr$ 35 o trem, enquanto variavam de Cr$ 100 e Cr$ 150 as tarifas de ônibus. Para se chegar a locais distantes o trem era fundamental. Ele era mais rápido e com poucas baldeações.

Outro trabalhador ouvido pela Folha de São Paulo foi o polidor de uma concessionária da Mercedes-Benz, José Hamilton, que tinha dois filhos e recebia uma salário de Cr$ 90 mil, “espero que o patrão veja na televisão o que aconteceu aqui para saber que não tinha jeito mesmo de eu chegar no serviço” [5], lamentava.

Referências

- Acervo Folha de SP, outubro de 1983; Boletins de Ocorrência da Polícia Militar; Relatórios do Serviço Nacional de Informações e Deops.
- [1] Editorial. Folha de São Paulo, 29 de outubro de 1983, p.2.
- [2] Milton dos Santos, negro, nascido em Limeira, veio para São Paulo na década de 1960, se filiou ao MDB e participou do Movimento Negro. Em 1983 foi nomeado pelo prefeito Mario Covas como Administrador Regional de Pirituba-Jaraguá-perus. O Coletivo Salve Kebrada realizou uma entrevista de História de vida com Milton dos Santos em 2016, que pode ser conferida nesse link. https://www.youtube.com/watch?v=jwtfXhr0xuM&t=36s
- [3] Sinto como se estivesse no meio de uma guerra. Folha de São Paulo, 29 de outubro de 1983. p.17.
- [4] Atraso causa destruição de trens em duas estações. Folha de São Paulo, 29 de outubro de 1983. p.17.
- [5] Sinto como se estivesse no meio de uma guerra. Folha de São Paulo, 29 de outubro de 1983. p.17.
Sobre o autor:
Jaraguá SP Post Rodrigo Gonçalves Benevenuto é mestre em História, Política e Bens Culturais pela FGV e fundador do Coletivo Salve Kebrada.

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