Aziz Ab'Saber no Jaraguá: o homem que conhecia o solo brasileiro como as linhas da própria mão

Aziz Ab'Saber (1924-2012) foi um geógrafo brasileiro especializado em Geomorfologia, a ciência que estuda a formação e transformação do relevo da superfície da Terra ao longo dos tempos. Teve como alma mater, em sua carreira, a Universidade de São Paulo (USP), onde inclusive foi professor. Utilizando-se principalmente de observações de campo, pesquisou e sistematizou o solo brasileiro, o qual passou a conhecer no decorrer dos anos como as linhas da própria mão.

Aziz Ab'Saber recebe o troféu Juca Pato, em 2011. Foto: obtida no blog Geografia é Luta
Aziz Ab'Saber recebe o troféu Juca Pato, em 2011.
Foto: obtida no blog Geografia é Luta
Figura amplamente citada em livros didáticos, Ab'Saber produziu mais de 480 documentos científicos sobre o relevo e o solo de diferentes áreas do Brasil, os quais integram, além da Geografia, a Arqueologia, a Ecologia, a Geologia e, é claro, a Geomorfologia, entre outras ciências. É frequentemente mencionado nas mídias impressas e online da grande imprensa.

No auge, ganhou mais de uma dezena de honrarias científicas, dentre as quais o Prêmio Internacional de Ecologia (1999), o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia (1999), o Prêmio Unesco para Ciência e Meio Ambiente (2001), além de três prêmios Jabuti (1997, 2005 e 2007).

Se fosse possível definir Ab'Saber e sua obra em uma linguagem que pudesse ser rapidamente compreendida por todas as pessoas deste país, diria-se que em sua época ele teria sido um dos "Pelés" da produção científica de Geografia no Brasil, tendo marcado neste ramo mais de mil "gols".

Mas nem sempre foi assim. Filho de um imigrante libanês que havia fugido de seu país por causa de conflitos religiosos, Ab'Saber teve uma infância extremamente pobre no Brasil. Desde criança, contudo, foi incentivado a estudar e isso fez a diferença em sua vida.

Aos 18 anos, o problema da pobreza o influenciaria até mesmo na escolha da ciência que estudaria na faculdade, "o preço dos livros de História e das assinaturas das revistas especializadas era um empecilho", disse em entrevista concedida em 1992 a Carmen Weingrill e Vera Rita Costa, publicada na edição 82 da Revista Ciência Hoje, "nas primeiras excursões ao campo, descobri que na Geografia eu podia ler a paisagem e não precisava de livros. E também não havia bibliografia para os trabalhos que deveríamos fazer. Bastava ter saúde e boa vontade. Comecei então a ir ao campo e a fazer pequenas viagens. Como eu não tinha máquina fotográfica, aprendi a desenhar as paisagens que via", completou.

Já na academia, o geógrafo começaria as suas observações de campo (as quais lhe seriam um diferencial frente aos demais geógrafos de sua época) curiosamente pelo distrito Jaraguá, "o primeiro trabalho de campo que fiz, sem orientação, foi sobre a geomorfologia da região do Jaraguá e arredores. Partindo de trem da estação da Luz, em São Paulo, descrevi as colinas até chegar a Taipas e depois subir ao Pico do Jaraguá. Descobri que havia outra coisa, além da história, que eu gostava de fazer e que era muito esportiva: viajar em trem de subúrbio, que naquela época era muito barato. Foi assim que minha carreira científica começou", disse ao longo da já mencionada entrevista.

Pico do Jaraguá em 1950. Imagem inclusa nos trabalhos de Ab'Saber. Foto: Dirceu Teixeira
Pico do Jaraguá em 1950. Imagem inclusa nos trabalhos de Ab'Saber.
Foto: Dirceu Teixeira
Destas observações é que resultou o trabalho "Notas sobre a geomorfologia do Jaraguá e vizinhanças" (1948) republicado de maneira revista e ampliada nos anais da Associação dos Geógrafos Brasileiros em 1951 com o título "Geomorfologia da região do Jaraguá", no qual Ab'Saber escreve: "(...) achamos que os picos e morros quartzíticos da Série São Roque constituem acidentes de relevo de excepcional valor geomórfico, pelo fato de sugerirem níveis de erosão antigos da região” e também "em Geomorfologia poderíamos dizer que a região do Jaraguá e vizinhanças constituem, em seu conjunto, um belo exemplo de erosão diferencial”.

Quando escreve "Série São Roque", o geógrafo está se referindo a um conjunto de rochas "depositadas em ambiente marinho com atividade vulcânica submarina" (HENRIQUE-PINTO, 2008) formadas no período Pré-Cambriano Paulista entre 700 milhões e 500 milhões de anos atrás. Essa informação insinua que, em algum momento de um passado distante, o lugar onde nós cidadãos e cidadãs jaraguenses vivemos hoje já foi um mar ou oceano.

E quando menciona o termo "erosão diferencial", Ab'Saber está relatando que a erosão atua de maneira diferente sobre as rochas. Assim, o desgaste erosivo modela as rochas menos resistentes em elevados mais baixos e as mais resistentes em elevados mais altos.

Dessa forma, é possível concluir que o Pico do Jaraguá só se destaca na paisagem porque é constituído por quartzito (tipo de rocha que tem mais de 75% de quartzo, que por sua vez é mais duro que o aço) e só por isso resistiu ao processo erosivo ocorrido ao longo de milhões de anos muito mais do que os outros tipos de rochas dos elevados menores da cidade de São Paulo.

Pico do Jaraguá visto a partir de Taipas em 1952. Imagem inclusa nos trabalhos de Ab'Saber. Foto: Ab'Saber
Pico do Jaraguá visto a partir de Taipas em 1952. Imagem inclusa nos trabalhos de Ab'Saber.
Foto: Ab'Saber
Seja como for, em 1956, algumas observações de campo feitas por Ab'Saber no Jaraguá foram inseridas no contexto da tese de doutorado defendida por ele, na USP, sob o título de "Geomorfologia do sítio urbano de São Paulo".

"Por seu turno, a grande lente rejuvenescida dos quartzitos do Jaraguá forçou a existência de um quadro local de drenagem radial bem mais definido que o próprio caso da Cantareira", escreve em um dos parágrafos da obra, "tem-se, portanto, que lentes maciças de rochas resistentes, encravadas em extensas massas de rochas bem menos resistentes funcionam exatamente como se fossem bossas de rochas intrusivas, domos, aparelhos vulcânicos ou corpos intrusivos restritos, criando quadros locais de drenagem radial. Fato válido, entretanto, principalmente para a fase de maturidade de maciços antigos rejuvenescidos, como é o caso do Jaraguá e da Cantareira. Por último, haveria a dizer que os dois casos citados de drenagens radiais dos arredores de São Paulo são expressões dos complexos rearranjos de drenagem assistidos pela região após o entalhamento e a dissecação da antiga superfície das cristas médias", conclui.

Neste trecho de sua tese, ao abordar a questão da "drenagem radial", o autor faz menção a um padrão de escoamento que ocorre a partir de um ponto elevado. Neste contexto, ele compara o Pico do Jaraguá aos elevados da Serra da Cantareira, dizendo que tal padrão é mais definido na primeira do que na segunda opção.

Enfim, neste ano de 2018 faz 70 anos que Ab'Saber publicou seu primeiro tratado científico, o qual foi produzido com observações de campo feitas no Jaraguá. Para nós moradores e moradoras locais é uma honra que o primeiro projeto acadêmico de um cientista deste calibre tenha sido sobre um ponto de interesse da paisagem do nosso distrito.

Referências:

AB'SABER, Aziz. Geomorfologia do sítio urbano de São Paulo. Fac-Similar, 50 anos. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007. 318 p.

HENRIQUE-PINTO, Renato; JANASI, Valdecir de Assis. Metaconglomerados e rochas associadas do Grupo São Roque a norte da cidade de São Paulo, Brasil. 2008. 425 p. Dissertação de mestrado (Petrologia Ígnea e Metamórfica)- Instituto de Geociências, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/44/44143/tde-11112008-115527/pt-br.php>. Acesso em: 28 jun. 2018.

OLIMPIA, Thamires. Aziz Ab'Saber. 2015. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/geografia/aziz-absaber.htm>. Acesso em: 28 jun. 2018.

PENA, Me Rodolfo Alves. Geomorfologia. 2015. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/geografia/geomorfologia.htm>. Acesso em: 28 jun. 2018.

PONTES, Henrique Simão et al. (Org.). Anais: IV simpósio brasileiro de patrimônio geológico e II encontro luso-brasileiro de patrimônio geomorfológico e geoconservação. Ponta Grossa/PR: Gupe, 2017. 723 p. Disponível em: <https://www.4sbpg.com/anais>. Acesso em: 28 jun. 2018.

WEINGRILL, Carmen; COSTA, Vera Rita. Entrevista com o professor Aziz Nacib Ab'Saber. 82. ed. São Paulo: SBPC, 1992. v. 14.

WIKIPÉDIA. Aziz Ab'Saber. 2018. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Aziz_Ab%27Saber>. Acesso em: 28 jun. 2018.

WINGE, M. Glossário geológico ilustrado: drenagem radial. Sigep, 2018. Disponível em: <http://sigep.cprm.gov.br/glossario/verbete/drenagem_radial.htm>. Acesso em: 28 jun. 2018.

WINGE, M. Glossário geológico ilustrado: erosão diferencial. Sigep, 2018. Disponível em: <http://sigep.cprm.gov.br/glossario/verbete/erosao_diferencial.htm>. Acesso em: 28 jun. 2018.

Sobre o Autor:
Marinaldo Gomes Pedrosa Marinaldo Gomes Pedrosa é formado em Jornalismo pela UniSant'Anna. Vive no bairro Jaraguá desde 1976.

Comentários

  1. Talvez nem o próprio Aziz Ab'Saber em sua imaginação pudesse prever que suas obras alcançaria tamanha repercussão. Muitos professores tem como referência as obras de Aziz Ab'Saber e nós alunos seguimos suas orientações.

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    1. Verdade. Acho muito interessante que a primeira obra dele tenha sido sobre o periférico e abandonado (do ponto de vista dos investimentos públicos) Jaraguá.

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