Verão de 2019, domingo, 13 de janeiro, 9h30, 25 graus. Saio de casa na Cidade D'Abril, uma vila do distrito Jaraguá SP, com a intenção de percorrer a Trilha do Pai Zé (Foto 1) também chamada de Trilha do Pico do Jaraguá, que tem 3,6 quilômetros (percurso de 2h30 ida e volta). Ela situa-se dentro do Parque Estadual do Jaraguá (PEJ), um remanescente da Mata Atlântica.
É um dia claro como cristal. Ando, ando debaixo de sol. E a partir de uma passarela da avenida Alexios Jafet, próxima ao Supermercado Kibe, posso ver o Pico do Jaraguá. Aqui, por alguns minutos, observo as nuvens do tipo cirrus espalhadas de ponta a ponta no céu azul anil (Foto 2).
Vou para o ponto de ônibus, onde pego o Jaraguá / Praça Ramos 1896-10. Desço na frente do PEJ. A poucos metros da entrada da trilha, um guarda local observa a mata. "Tem um pica-pau ali", diz. É um Pica-pau-verde-barrado, Colaptes melanochloros (Foto 3).
Entro na trilha, que começa com uma alameda de paralelepípedos (Foto 4) que pode ter sido projetada e construída na década de 1970 junto com a Concha Acústica e demais obras do lugar pelo escritório de arquitetura Leo Tomchinsky e pela C.P.R. Consultoria Projetos e Obras LTDA.
A certa altura da alameda percebo uma aglomeração de pessoas. Elas estão observando um Caxinguelê, Guerlinguetus ingrami (Foto 5). Concentrado, o bicho rói algo ininterruptamente, o que emite um barulho estridente e espalha resíduos feito uma serra elétrica.
Agora, ainda na alameda, avisto uma planta singular que se destaca da vegetação ao redor por causa da sua solitária flor vermelha. Trata-se de um exemplar do arbusto Malvaviscus arboreus (Foto 6), que os beija-flores adoram e que na jardinagem pode ser usado como cerca viva.
De súbito, os paralelepípedos dão lugar a uma trilha de terra (Foto 7). Os sons dos automóveis ficam cada vez mais distantes. Ouço cigarras. Ouço também o ruído de outros bichos, mas não consigo vê-los. Paro um instante. Digo bom dia a alguns passantes. Tomo um gole de água.
Escaneio a mata com os olhos. Logo encontro uma urtiga brava, Urera nitida (Foto 8). Ela tem folhas estranhas, ora com furos, ora com saliências. Seus cachos estão carregados de frutos brancos do tamanho de feijões. Melhor não tocar nela, pois ela provoca irritações na pele. Então, só contemplo.
Mas não posso ficar aqui para sempre. Dou mais ou menos 50 passos e encontro uma Palmeira-real, Archontophoenix cunninghamii (Foto 9). É uma espécie australiana. Aqui no Sul do Brasil e especialmente no PEJ é considerada invasora. Ambientalistas consideram urgente a sua erradicação.
Penso, "o Jaraguá tem mais de 1.000 prédios e outras tantas casas. É uma selva de pedra que começou a ser construída há pouco mais de 100 anos. Em apenas 25 minutos transitei daquela selva para esta outra, a Mata Atlântica, que talvez tenha 50 milhões de anos. É incrível". Enquanto penso, ela adensa. Tapa o sol. Vejo uma escada (Foto 10).
Sigo em frente. Dou de cara com um lugar em que uma cerca rústica protege os turistas que percorrem a trilha de um pequeno barranco (Foto 11).
De vez em quando surgem na trilha trechos de pedregulhos com limo (Foto 12). Me pergunto, "por que essas pedras aparecem do nada?", mas não encontro respostas para isso. Acho que nem o Google encontraria.
Encontro uma pequena construção com jeito de capela (Foto 13). Acho que tinha uns 12 anos quando vi isso pela primeira vez. Em outra oportunidade, um guia do PEJ me disse que ela pode ter sido construída por religiosos após o ano de 1961, quando o lugar foi transformado em parque.
Ao observar a capela, lembro-me que o caseiro do PEJ dissera-me certa vez que o nome "Trilha do Pai Zé" se deve ao fato de que antigamente havia um terreiro de Umbanda nesta região. Seja como for, chega de pensar. Ando um pouco mais e avisto mais exemplares da Palmeira-real (Foto 14).
Ando, ando. Bebo água. Sinto o calor. Está abafado agora. Observo. Ouço os bichos. Eles "berram". Talvez sejam pedidos de socorro, gritos de dor ou cortejos. Sei lá. Em um tronco, vejo duas exúvias (exoesqueletos eliminados por artrópodes) de cigarras (Foto 15).
Vou, vou. Passo por passarelas de madeira (Foto 16).
Atravesso trechos de terra com raízes expostas (Foto 17).
Descubro bancos para os turistas mais cansados (Foto 18).
Na frente dos bancos, Saguis-de-tufos-brancos, Callithrix jacchus (Foto 19) se apresentam para nós turistas em troca da nossa comida envenenada (Ah, se eles soubessem!).
Caminho um pouco mais. Tudo é verde agora (Foto 20). Percebo que os mosquitos me odeiam. É que esguichei repelente na minha pele antes de vir para cá. Lá em casa os mosquitos são criados com todinho e internet, por isso são inofensivos (creio eu, inocente), mas aqui eles podem ser letais.
Há árvores com líquens (Foto 21) por toda parte.
E, de repente, a folhagem torna-se escassa e a sombra também (Foto 22).
Aqui, turistas acalorados(as) sobem e descem sem parar (Foto 23). Uns(umas) felizes porque chegou o pedaço com sombra, outros(as) nem tanto porque chegou a hora de enfrentar uma subida com sol no lombo.
Subo um pouco mais e avisto múltiplos eucaliptos (Foto 24). De acordo com a bióloga Natasha Ceretti Maria, essas árvores altíssimas não deviam estar nesse lugar, pois além de não serem nativas, elas são típicas de monocultura, o que impede o crescimento natural das plantas e árvores nativas.
Daqui em diante, a floresta ombrófila se abre definitivamente em campos de cerrado (Foto 25). Transição. Sol no lombo.
Olho para a direita e avisto lá longe um morro que parece tão alto quanto o Pico do Jaraguá. Pego a câmera, aplico um zoom e clico (Foto 26). Meu amigo ciclista Caio Cesar me disse que aquele morro talvez pertença a um lugar chamado Colinas da Anhanguera. Você leitor(a), confirma?
Falta pouco agora. Surgem mais pedras no caminho (Foto 27), mas nada que não possa ser ultrapassado.
Acabo de encontrar um grande quartzito (Foto 28). O quartzito conta com 75% de quartzo, que é mais duro que o aço. Ele predomina neste lugar. É por causa dele que este monte resistiu a milhões de anos de erosão e se sobressaiu na paisagem. É por conta dele que o Pico do Jaraguá é chamado hoje de Morro Testemunho.
E aqui está, a escada final e logo ali o mirante da trilha (Foto 29).
Atrás do mirante tem um abacateiro, onde clico esta borboleta, a Pterourus scamander (Foto 30), que está dando sopa. As lagartas desta espécie se alimentam justamente do abacateiro. Ela gosta de viver em lugares altos. Nasceu para grandes altitudes.
Do mirante vejo a transição dos campos de cerrado para mata ombrófila (Foto 31). Observo também que os(as) turistas não param de chegar e partir. Topei com mais de 100 deles(as) no percurso, sendo que 4 desciam correndo, possivelmente treinando para alguma corrida de montanha.
Entro na via asfaltada, a Estrada Turística do Jaraguá, e caminho até o platô. Avisto a antena da Rede Bandeirantes (Foto 32) no Pico do Jaraguá e atrás dela nuvens mais espessas do que os mirrados cirrus no início desta jornada.
Fazem 31 graus. Isso significa que a temperatura subiu 6 graus ao longo da trilha. Compro um sorvete e vou até um dos mirantes (Foto 33). Avisto a cidade de São Paulo e além. É a recompensa final dos(as) turistas que se atrevem a subir a Trilha do Pai Zé.
Sobre o Autor:
Foto 1: Trilha do Pai Zé (trecho final) |
É um dia claro como cristal. Ando, ando debaixo de sol. E a partir de uma passarela da avenida Alexios Jafet, próxima ao Supermercado Kibe, posso ver o Pico do Jaraguá. Aqui, por alguns minutos, observo as nuvens do tipo cirrus espalhadas de ponta a ponta no céu azul anil (Foto 2).
Foto 2: Pico do Jaraguá |
Vou para o ponto de ônibus, onde pego o Jaraguá / Praça Ramos 1896-10. Desço na frente do PEJ. A poucos metros da entrada da trilha, um guarda local observa a mata. "Tem um pica-pau ali", diz. É um Pica-pau-verde-barrado, Colaptes melanochloros (Foto 3).
Foto 3: Pica-pau-verde-barrado na Trilha do Pai Zé |
Entro na trilha, que começa com uma alameda de paralelepípedos (Foto 4) que pode ter sido projetada e construída na década de 1970 junto com a Concha Acústica e demais obras do lugar pelo escritório de arquitetura Leo Tomchinsky e pela C.P.R. Consultoria Projetos e Obras LTDA.
Foto 4: paralelepípedos da Trilha do Pai Zé |
A certa altura da alameda percebo uma aglomeração de pessoas. Elas estão observando um Caxinguelê, Guerlinguetus ingrami (Foto 5). Concentrado, o bicho rói algo ininterruptamente, o que emite um barulho estridente e espalha resíduos feito uma serra elétrica.
Foto 5: Caxinguelê, comum na Trilha do Pai Zé |
Agora, ainda na alameda, avisto uma planta singular que se destaca da vegetação ao redor por causa da sua solitária flor vermelha. Trata-se de um exemplar do arbusto Malvaviscus arboreus (Foto 6), que os beija-flores adoram e que na jardinagem pode ser usado como cerca viva.
Foto 6: Malvaviscus arboreus |
De súbito, os paralelepípedos dão lugar a uma trilha de terra (Foto 7). Os sons dos automóveis ficam cada vez mais distantes. Ouço cigarras. Ouço também o ruído de outros bichos, mas não consigo vê-los. Paro um instante. Digo bom dia a alguns passantes. Tomo um gole de água.
Foto 7: terra à vista na Trilha do Pai Zé |
Escaneio a mata com os olhos. Logo encontro uma urtiga brava, Urera nitida (Foto 8). Ela tem folhas estranhas, ora com furos, ora com saliências. Seus cachos estão carregados de frutos brancos do tamanho de feijões. Melhor não tocar nela, pois ela provoca irritações na pele. Então, só contemplo.
Foto 8: Urera nitida |
Mas não posso ficar aqui para sempre. Dou mais ou menos 50 passos e encontro uma Palmeira-real, Archontophoenix cunninghamii (Foto 9). É uma espécie australiana. Aqui no Sul do Brasil e especialmente no PEJ é considerada invasora. Ambientalistas consideram urgente a sua erradicação.
Foto 9: Palmeira-real |
Penso, "o Jaraguá tem mais de 1.000 prédios e outras tantas casas. É uma selva de pedra que começou a ser construída há pouco mais de 100 anos. Em apenas 25 minutos transitei daquela selva para esta outra, a Mata Atlântica, que talvez tenha 50 milhões de anos. É incrível". Enquanto penso, ela adensa. Tapa o sol. Vejo uma escada (Foto 10).
Foto 10: escadaria da Trilha do Pai Zé |
Sigo em frente. Dou de cara com um lugar em que uma cerca rústica protege os turistas que percorrem a trilha de um pequeno barranco (Foto 11).
Foto 11: cerca rústica |
De vez em quando surgem na trilha trechos de pedregulhos com limo (Foto 12). Me pergunto, "por que essas pedras aparecem do nada?", mas não encontro respostas para isso. Acho que nem o Google encontraria.
Foto 12: pedras no caminho |
Encontro uma pequena construção com jeito de capela (Foto 13). Acho que tinha uns 12 anos quando vi isso pela primeira vez. Em outra oportunidade, um guia do PEJ me disse que ela pode ter sido construída por religiosos após o ano de 1961, quando o lugar foi transformado em parque.
Foto 13: capela da Trilha do Pai Zé |
Ao observar a capela, lembro-me que o caseiro do PEJ dissera-me certa vez que o nome "Trilha do Pai Zé" se deve ao fato de que antigamente havia um terreiro de Umbanda nesta região. Seja como for, chega de pensar. Ando um pouco mais e avisto mais exemplares da Palmeira-real (Foto 14).
Foto 14: Palmeiras-reais e outras árvores |
Ando, ando. Bebo água. Sinto o calor. Está abafado agora. Observo. Ouço os bichos. Eles "berram". Talvez sejam pedidos de socorro, gritos de dor ou cortejos. Sei lá. Em um tronco, vejo duas exúvias (exoesqueletos eliminados por artrópodes) de cigarras (Foto 15).
Foto 15: exúvias |
Vou, vou. Passo por passarelas de madeira (Foto 16).
Foto 16: passarela |
Atravesso trechos de terra com raízes expostas (Foto 17).
Foto 17: raízes |
Descubro bancos para os turistas mais cansados (Foto 18).
Foto 18: descanso |
Na frente dos bancos, Saguis-de-tufos-brancos, Callithrix jacchus (Foto 19) se apresentam para nós turistas em troca da nossa comida envenenada (Ah, se eles soubessem!).
Foto 19: Saguis-de-tufos-brancos |
Caminho um pouco mais. Tudo é verde agora (Foto 20). Percebo que os mosquitos me odeiam. É que esguichei repelente na minha pele antes de vir para cá. Lá em casa os mosquitos são criados com todinho e internet, por isso são inofensivos (creio eu, inocente), mas aqui eles podem ser letais.
Foto 20: mata densa |
Há árvores com líquens (Foto 21) por toda parte.
Foto 21: líquens |
E, de repente, a folhagem torna-se escassa e a sombra também (Foto 22).
Foto 22: a mata se abre |
Aqui, turistas acalorados(as) sobem e descem sem parar (Foto 23). Uns(umas) felizes porque chegou o pedaço com sombra, outros(as) nem tanto porque chegou a hora de enfrentar uma subida com sol no lombo.
Foto 23: turistas |
Subo um pouco mais e avisto múltiplos eucaliptos (Foto 24). De acordo com a bióloga Natasha Ceretti Maria, essas árvores altíssimas não deviam estar nesse lugar, pois além de não serem nativas, elas são típicas de monocultura, o que impede o crescimento natural das plantas e árvores nativas.
Foto 24: eucaliptos |
Daqui em diante, a floresta ombrófila se abre definitivamente em campos de cerrado (Foto 25). Transição. Sol no lombo.
Foto 25: cerrado |
Olho para a direita e avisto lá longe um morro que parece tão alto quanto o Pico do Jaraguá. Pego a câmera, aplico um zoom e clico (Foto 26). Meu amigo ciclista Caio Cesar me disse que aquele morro talvez pertença a um lugar chamado Colinas da Anhanguera. Você leitor(a), confirma?
Foto 26: Colinas da Anhanguera (?) |
Falta pouco agora. Surgem mais pedras no caminho (Foto 27), mas nada que não possa ser ultrapassado.
Foto 27: pedras no caminho |
Acabo de encontrar um grande quartzito (Foto 28). O quartzito conta com 75% de quartzo, que é mais duro que o aço. Ele predomina neste lugar. É por causa dele que este monte resistiu a milhões de anos de erosão e se sobressaiu na paisagem. É por conta dele que o Pico do Jaraguá é chamado hoje de Morro Testemunho.
Foto 28: quartzito |
E aqui está, a escada final e logo ali o mirante da trilha (Foto 29).
Foto 29: escada final |
Atrás do mirante tem um abacateiro, onde clico esta borboleta, a Pterourus scamander (Foto 30), que está dando sopa. As lagartas desta espécie se alimentam justamente do abacateiro. Ela gosta de viver em lugares altos. Nasceu para grandes altitudes.
Foto 30: Pterourus scamander |
Do mirante vejo a transição dos campos de cerrado para mata ombrófila (Foto 31). Observo também que os(as) turistas não param de chegar e partir. Topei com mais de 100 deles(as) no percurso, sendo que 4 desciam correndo, possivelmente treinando para alguma corrida de montanha.
Foto 31: transição |
Entro na via asfaltada, a Estrada Turística do Jaraguá, e caminho até o platô. Avisto a antena da Rede Bandeirantes (Foto 32) no Pico do Jaraguá e atrás dela nuvens mais espessas do que os mirrados cirrus no início desta jornada.
Foto 32: torre da Bandeirantes |
Fazem 31 graus. Isso significa que a temperatura subiu 6 graus ao longo da trilha. Compro um sorvete e vou até um dos mirantes (Foto 33). Avisto a cidade de São Paulo e além. É a recompensa final dos(as) turistas que se atrevem a subir a Trilha do Pai Zé.
Foto 33: mirante |
- Leia também: "Onde fica Jaraguá SP: 19 coisas que as pessoas vêm fazer neste lugar"
Notas:
- Todas as fotos deste artigo foram clicadas no dia 13 de janeiro de 2019 por mim, Marinaldo Gomes Pedrosa, ao longo da Trilha do Pai Zé;
- Agradeço aos(às) biólogos(as) e ambientalistas dos grupos "Identificação de aves", "Identificação de plantas", "Insetos do Brasil" e "Borboletas e Mariposas Neotropicais" (do Facebook) que me ajudaram a identificar plantas, árvores e animais mencionados neste artigo.
Marinaldo Gomes Pedrosa é formado em Jornalismo pela UniSant'Anna. Vive no bairro Jaraguá desde 1976. |
Ótimo texto bela reportagem
ResponderExcluirAchei sensacional! Conteúdo maravilhoso!
ResponderExcluirAdorei seu post, compartilhei com meu filho, vamos ver se ele vai comigo. Senão, irei só mesmo. Bacana, também me formei na Unisant'Anna, saudades da facul!😍
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